San Simón e San Antonio são duas pequenas ilhas no interior da ria de Vigo, unidas por uma ponte desde 1927, pertencentes ao município de Redondela (Pontevedra, Galiza), a poucos quilómetros do Porto de Cesantes.
Pequenas em área, com apenas 250 metros de comprimento e 84 de largura, preservam uma qualidade hermética que permite conservar em vácuo séculos de história — história essa que, embora comece a ser escrita na Idade Média, se crê mais longínqua no tempo. A vegetação compósita foi reclamando propriedade das ínsulas, apesar dos pontuais resquícios de presença humana, como as edificações recentemente recuperadas para albergar hóspedes ocasionais ou os apontamentos escultóricos que datam de finais do século XX, altura em que foram declaradas Bem de Interesse Cultural. San Simón e San Antonio encontram-se hoje desabitadas a maior parte do ano, embora nem sempre tenha sido esse o caso.
Consta-se que San Simón e San Antonio tenham funcionado como centro monástico desde o século XII até à Batalha de Rande, em 1702, a partir da qual a estadia nas ilhas se viria a tornar um fenómeno intermitente. De 1842 a 1927, após uma série de acontecimentos que marcará irremediavelmente a sua história, San Simón e San Antonio abandonarão a sua função original de local de culto religioso para servir como lazareto por ordem do Estado.
É entre 1936 e 1939, durante a guerra civil espanhola, que decorre o capítulo mais negro da história insular — quando o governo franquista transforma o local num campo de concentração para opositores ao regime, deixando uma mácula indelével na memória coletiva com a morte de resistentes antifascistas e enlutando centenas de famílias. As ilhas viriam a ser aliviadas desta função em 1943 e reinventadas como um lar para a formação de órfãos de marinheiros de 1955 a 1963, após um hiato de sete anos por conta do naufrágio de uma embarcação da guarda de Franco que vitimara 43 pessoas. O local esteve entregue ao abandono até à sua recuperação como centro histórico em 1999.
Desde 2019 que se realiza por iniciativa conjunta do Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galiza – Norte de Portugal, a Consellería de Cultura e Turismo da Xunta de Galicia e a Direção Regional de Cultura do Norte, o Nortear Ilustrado — uma residência artística de três dias na ilha de San Simón que reúne ilustradores portugueses e galegos.
Este ano, o mote para a criação foi uma cartografia ilustrada da ilha, proposto pela coordenadora artística desta edição, Itziar Ezquieta. O evento contou com a participação de dois ilustradores portugueses — Rafael Amadeu e eu — e dois galegos — Susana Suniaga e Isaac Sucasas. A proposta partia de uma exploração individual e coletiva do espaço circundante, bem como da sua memória histórica, para desenvolver uma obra individual.
A nossa estadia em San Simón acabou por coincidir com a chegada do furacão Tammy ao Atlântico, o que obrigou a uma reformulação do plano inicial e os três dias de que dispúnhamos acabaram por ser passados quase inteiramente entre paredes. Fomos aproveitando os raros intervalos entre as vagas de chuva torrencial para conhecer melhor o entorno e recolher material. Em San Antonio, no edifício que em tempos servira de lazareto “sujo”, existe hoje um Centro de Interpretação e Documentação, com um acervo de imagens e textos sobre a história das ilhas, que se revelou extremamente útil na fase de investigação.
De entre o material que recolhi para a minha cartografia pessoal, contam-se algumas fotos, cartas de prisioneiros políticos e páginas dos seus diários e, em particular, este poema de Valentín Paz-Andrade:
Empréstame Meendiño
túa voce lembradoira
e que doblen os sinos da
ermida “ante o altar”,
po-lo fin sanguiñento que
un dia iría a ter
a illa que nascera
baixo o sino de amare.
(“Fragmento dun soneto Valentín Paz-Andrade dedicou a Alvaro Gil Varela cando estaba prisioneiro en San Simón.” — legenda do poema que se encontra reproduzido, juntamente com escritos de outros autores, no Centro de Interpretação e Documentação na ilha de San Antonio). Meendiño terá sido um trovador galego medieval, autor da célebre cantiga de amigo acerca da ilha de San Simón (e também a única obra da sua autoria a resistir ao teste do tempo).
O arquivo de acesso livre está repleto de testemunhos pessoais e relatos de familiares que ajudam a reconstruir a história por vezes fragmentada das ilhas. Partilho aqui alguns desses relatos, escritos e fotográficos, que serviram de base para a minha própria cartografia pessoal.
“O destino quixo que Joaquín Nores e Teresa Blanco se coñecesen e descubriran o amor en San Simón. A ella matáranlle un irmán, o seu pai e tres irámos máis estiveran presos em Vigo e outro irmán seu morrera defendendo a República. A el a guerra arrebatáralle dous irmáns. A desgraza uniunos e xa non se separarían máis.”
“Carta de José Mejuto, preso en San Simón, a súa dona; nela relátase a vida cotiá dos presos na illa. El morrería fusilado. Enriba e á esquerda, fotos del e mais da súa familia, súa muller, Alejandra, acompañada dos fillos.”
A partir das ideias de ausência e memória, comecei por explorar o espaço negativo nas fotos que fui recolhendo, procurando reproduzir uma presença fisicamente invisível que se vai evidenciando à medida que o pano de fundo reclama o seu protagonismo. O corpo ausenta-se, mas a sua memória persistirá nos interstícios das vidas que deixa para trás.
Existem vestígios de uma tentativa de apagamento da identidade das vítimas que é comum a todas as histórias. Apercebemos-nos disso quando vemos que as identidades que as protagonizam foram sendo reduzidas a fragmentos, cada vez mais e mais pequenos: a uma última foto, a uma carta de despedida, a uma fração de uma página de diário, a um nome numa lista, a uma estatística. Vidas inteiras e completas, bruscamente encurtadas, forçadas a mingar para caber no estatuto de “recluso” ou “criminoso”, nalguns casos até ao total desaparecimento. Às vezes a morte não é suficiente para servir de exemplo — é preciso garantir que vida que finda nunca existiu.
São sempre mais vítimas do que aquelas cujos rostos ou caligrafia resistem para contar a sua história. Com o tempo e sem interferência, o que outrora fora realidade vai ficando paulatinamente mais nebuloso, questionável, mitológico. A memória torna-se, então, «um ato de resistência».